O dilema do reconhecimento facial no Recife

Tecnologia reflete o racismo, diz especialista; prefeitura alega o bem-estar da população.
(Foto: Rodolfo Loepert/ PCR) 

    Após o anúncio de que o Recife, capital de Pernambuco, pretende adotar a tecnologia de reconhecimento facial para vigilância em massa, algumas organizações, movimentos sociais, e especialistas em tecnologia, criaram a campanha Sem Câmera na Minha Cara!, que denuncia os possíveis constrangimentos e perigos da implementação da ferramenta. Na última semana, a Prefeitura do Recife divulgou que avalia a proposta de R$ 100 milhões de uma empresa privada para a concessão, instalação e operação de 108 painéis eletrônicos que possuem câmeras com reconhecimento facial e outros dispositivos. Diante da situação, foi aberto um Inquérito Civil Público por parte do Ministério Público de Pernambuco (MPPE).

    Procurados pela Propagavel, a representação dos movimentos sociais informou que a campanha é somente contra a implantação da câmera de reconhecimento facial disposta nos painéis. Mas que, no entanto, a articulação não pede pelo banimento da implementação de dispositivos de aferição (temperatura ambiente, qualidade do ar, incidência de raios solares), além da oferta de sinal gratuito de internet. A Secretaria Executiva de Parcerias Estratégicas do Recife (SEPE), por meio de nota, explicou que a utilização da tecnologia nos painéis está condicionada à regulamentação específica para tratamento e uso de dados e que “somente deverá vigorar após sanção de regulamentação”. Questionado sobre o inquérito, no dia 21 de junho, a assessoria de comunicação do Ministério Público informou que aguardava "retorno interno". No último dia 29, ao ser questionado mais uma vez, a assessoria do MPPE alegou férias e que na sexta-feira (1º de julho), a equipe verificaria o caso. Não houve atualização até a publicação desta matéria.

    O diretor de relações institucionais e fundador do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec), André Ramiro, explicou que a problemática começa desde a construção da arquitetura das tecnologias de reconhecimento facial, que funcionam através de algoritmos de inteligência artificial, baseados na coleta prévia de dados. 

    “Esses bancos de dados são majoritariamente compostos de rostos de homens brancos, que basicamente é a maior fatia de usuários de tecnologia no mundo. Ou seja, se formos para outro lado do espectro, de mulheres negras, por exemplo, que são, estatisticamente, os indivíduos que menos têm acesso a tecnologias e, portanto, seus rostos são menos coletados. E logo, consequentemente vão ser menos usados para o treinamento de sistema artificial”, pontua Ramiro, que participa da campanha.

    O especialista ressalta que a ferramenta é fruto de um sistema robusto e complexo de identificação, com base em bancos de dados gigantescos de rostos de pessoas. “Então, no outro lado da ponta, quando o reconhecimento facial vai fazer identificação de uma pessoa, ele tem uma maior eficácia em pessoas brancas, sobretudo homens. E, tem uma menor eficácia em mulheres, e pior ainda em mulheres negras, segundo estudos científicos, acadêmicos e governamentais”, complementa.

    A Prefeitura do Recife anunciou que a licitação do projeto de concessão, na última segunda-feira (20), resultou numa proposta no valor de R$ 100 milhões, apresentada pela empresa Eletromídia. O valor representa um percentual de 2.757% maior em relação ao valor mínimo estabelecido para participação na licitação, que era de R$ 3,5 milhões. Caso o montante seja aprovado, a empresa terá o prazo de dois anos para implantar todos os painéis eletrônicos digitais. 

O contexto Recife

    Mesmo o Recife tendo um dos principais parques tecnológicos e de inovação do Brasil, as preocupações em torno da tecnologia estão atravessadas principalmente por questões étnicas, políticas e de proteção de dados considerados sensíveis, em termos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Ramiro, que é mestre em ciências da computação no Centro de Informática (CIn) da UFPE, e graduado em direito na mesma instituição, pontua os dilemas em torno do uso da tecnologia no campo da Segurança Pública.

    “Quando vamos para a aplicação do sistema no campo da segurança pública, cujo os direitos lesados, caso uma injustiça seja cometida, são muitos maiores à liberdade de locomoção, de encarceramento. Isso gera um prejuízo à coletividade muito maior do que, por exemplo, se você não conseguir desbloquear seu celular com o reconhecimento facial. O dano que vai ser causado vai ser muito menor, do que um reconhecimento facial erroneamente funcionando e encarcerando alguém”, exemplifica Ramiro.

    “Isso faz parte da autonomia. Cabe ao indivíduo decidir se é mais prático, benéfico ou não. Mas quando é feito de forma compulsória, como no caso da Prefeitura do Recife, que quer que o reconhecimento facial seja obrigatório para segurança pública e permeia o espaço público. Nesse caso, a autonomia do indivíduo é esvaziada em nome de uma aplicação de uso compulsório e obrigatório”, avalia.

    A prefeitura explicou a Propagavel, que além dos relógios, cada um dos painéis será provido de uma câmera de monitoramento e possibilitará acesso à internet wi-fi de forma gratuita. Os equipamentos a serem instalados exibirão também dados sobre a temperatura ambiente, a qualidade do ar, a incidência de raios solares e informações de interesse público, como aquelas relacionadas à mobilidade urbana, por exemplo. 

Confira o protótipo do equipamento divulgado:

Protótipo do relógio digital que o município pretende implantar, divulgado em outubro de 2021. (Ilustração: PCR/Divulgação)

Perspectivas para o futuro

    André Ramiro elenca duas consequências sociopolíticas que podem ocorrer, caso a tecnologia seja de fato implementada na cidade. O primeiro, segundo ele, tem haver com o constrangimento na coletividade. O segundo diz respeito a falta de regulamentação e o contexto em que a Prefeitura do Recife deseja implementar a tecnologia.

    “Imagine, por exemplo, que você faça parte de um movimento social e queira fazer uma manifestação nas ruas públicas do Recife, contra uma política pública que esteja insatisfeito. Mas você sabe que ao longo da via você irá se deparar com 10 câmeras de reconhecimento facial, identificando cada um dos indivíduos que fazem parte daquela manifestação”, diz.

    “Então, se a gente contextualizar isso num Recife que tem o histórico de manifestações públicas pacíficas grandes, com herança das recentes movimentações em torno do Cais José Estelita ou até mesmo recentemente contra o governo federal em que pessoas ficaram cegas, em consequência da relação à truculência da Polícia Militar. Então, a gente parte de um contexto de tensão política muitíssimo grande de violência institucional, para intuir mais uma camada de constrangimento sobre o cidadão que quer se manifestar pacificamente e exercitar sua liberdade de expressão”, comenta.

    “Ou seja, a partir do reconhecimento facial, o indivíduo se torna constrangido e vê seu potencial de expressão inibido. Então, se um dia isso acontece, o exercício da democracia do contraditório e manifestação pública de liberdade de expressão é erodida, em razão desse constrangimento que vai estar em operação 24 horas por dia em mais de uma centena de pontos na cidade do Recife”.

    A Secretaria Executiva de Parcerias Estratégicas do Recife (SEPE), por meio de nota, explicou que em relação à possibilidade de utilização da tecnologia de detecção facial:

“O uso da funcionalidade está condicionado, pelo próprio edital da concessão, à regulamentação específica para tratamento e uso de dados. Portanto, qualquer utilidade neste sentido somente deverá vigorar após sanção de regulamentação determinada. Em paralelo, ao futuro parceiro privado caberá a responsabilidade restrita apenas de instalação e posterior manutenção e conservação dos 108 equipamentos e suas respectivas funcionalidades, além da exploração comercial de 216 painéis, sem qualquer acesso aos dados pessoais mesmo depois de ocorrida a regulamentação sobre o tema".

 Sanção regulamentar

    Na avaliação do diretor de relações institucionais e fundador do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec), André Ramiro, a gestão municipal está atuando em cima de uma “zona cinzenta regulatória”.

    “Atualmente nós temos duas iniciativas legislativas que buscam legislar sobre a proteção de dados pessoais no campo da Segurança Pública. Ou seja, esse é um tema que ainda não está regulado, porque é um tema muito complexo e demanda um nível de profundidade e amadurecimento amplo, que vai durar ao menos um ano, até que a gente chegue a um formato de regulação de proteção de dados pessoais para fins de segurança pública que seja satisfatório”, afirma Ramiro.

    O estado de Alagoas, da Bahia, do Ceará, da Paraíba, de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Roraima, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul,  Tocantins, Goiás, além do Distrito Federal, são alguns dos locais que já implementaram a tecnologia de reconhecimento facial ou que estão em processos de implementação.

    Para a Prefeitura do Recife, as câmeras de videomonitoramento nos painéis eletrônicos servirão para auxiliar a gestão municipal nas políticas de: 

“controle de tráfego, de monitoramento da evolução do trânsito, bem como no trabalho das forças de segurança, como Polícia Militar e a Guarda Municipal Civil do Recife (GMCR)”. Além disso, “todos os relógios terão wi-fi gratuito para a população, também viabilizados pela concessionária”.

    “A Prefeitura do Recife está se aproveitando dessa zona cinzenta e desse vazio regulatório para poder implementar uma tecnologia de vigilância em massa que vai coletar dados de todos os cidadãos recifenses, para fins de segurança pública. Dados faciais, que no regime de proteção de dados pessoais, são dados sensíveis. São aqueles que além de dizerem respeito ao indivíduo, carregam potencial de gerar preconceito e discriminação em relação ao titular dos dados. São chamados dados sensíveis, e portanto, merecem uma proteção diferenciada”, finaliza.

    Por fim, a SEPE informou ainda que a tecnologia de detecção facial nas câmeras:

“não é aspecto primordial do projeto e visa estritamente ao maior bem-estar da população, estando devidamente disciplinada no edital e respaldada pelas melhores práticas aplicadas num amplo conjunto de cidades avaliadas”.
 
    Além da campanha "Sem Câmera na Minha Cara!", que ocorre no Recife, há a campanha nacional "Tire Meu Rosto da Sua Mira", que pede o banimento total do uso das tecnologias de reconhecimento facial na Segurança Pública em todo o território brasileiro. 

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